sábado, 12 de janeiro de 2013

Porque o Lhakar é importante


Subjacente à onda de auto-imolações, que de forma compreensível têm dominado o discurso atual sobre o Tibete, uma corrente menos dramática de resistência está transformando a paisagem do ativismo tibetano. Essa nova força é pan-tibetano, um movimento popular de auto-confiança conhecido como Lhakar.

Os primeiros sinais do Lhakar - geralmente traduzido Quarta-feira Branca e, ocasionalmente, como Dedicação Pura - surgiram em 2008, após a revolta nacional contra o domínio chinês. Quatro anos depois de seu nascimento, o Lhakar produziu uma mudança de paradigma na forma como os tibetanos conceituam o ativismo, graças a três elementos-chave: descoletivização do ativismo, a cultura como arma e adoção da não-cooperação.



1. Descoletivização do Ativismo
O apelo central do Lhakar é a simplicidade. Concentra-se nos elementos fundamentais da liberdade, nas decisões mais banais que as pessoas fazem em suas vidas diárias - quando visitar o templo, que tipo de música ouvir, em qual restaurante comer, em qual loja comprar mantimentos, em que idioma falar em casa - ao invés de decisões maiores, pelas quais se paga um preço mais elevado.


Nos anos 80, era comum os tibetanos abarrotarem o templo Jokhang todas as semanas para acender lamparinas, queimar incenso e rezar secretamente pela longa vida do Dalai Lama. Esses rituais religiosos, em grande parte simbólicos, eram feitos às quartas-feiras, um dia considerado auspicioso para o Dalai Lama. Mas a repressão chinesa indiscriminada em 2008 radicalizou toda a nação e politizou a nova geração de tibetanos. Não havia quase nenhuma família no Tibete que não havia sido tocada por ela; até mesmo aqueles que ficavam dentro de casa aguardando o fim da revolta estavam a apenas um grau de separação de alguém que tivesse sido preso, desaparecido ou morto.

Como a China eliminou todas as formas de expressões coletivas de dissidência, os tibetanos responderam descoletivizando o ativismo. Por meio de ações pessoais, tais como usar roupas tradicionais, comer comida tibetana, ouvir rádio independente e ensinar sua língua nativa em casa, muitos tibetanos começaram a usar seu espaço individual para afirmar uma identidade que tem sido suprimida por décadas.

Neste período de forte carga política, os rituais que costumavam ser culturais repentinamente se tornaram políticos, não tanto por darem uma identidade tibetana ás pessoas, mas darem uma identidade não-chinesa. Nessa relação ganha-perde de identidade política, ser tibetano se tornou sinônimo de "não ser chinês". Este fenômeno deu origem a uma série de ações práticas que foram além de mero simbolismo, e, eventualmente, além das quartas-feiras.

Enfatizando os atos individuais de resistência ao invés de atos públicos de protesto, o Lhakar tem descentralizado a resistência. Ao tratar suas casas, locais de trabalho e computadores como campos de batalha de resistência, os tibetanos estão utilizando suas limitadas escolhas pessoais e atividades diárias como uma ferramenta para criar um maior espaço social, político e econômico. Um praticante do Lhakar não espera que a liberdade venha de um ajuste na política ou de uma mudança no coração de Pequim, mas a partir de seus próprios pensamentos diários, decisões e ações de fomento de um mundo paralelo de liberdade que supere a superestrutura de repressão da China.

Assim, por meio da descoletivização do ativismo, o Lhakar sustenta a resistência capacitando o indivíduo. Ao fazê-lo, tornou-se uma porta de entrada para o ativismo mais amplamente.



2. A Cultura como "Arma"

Quando se cresce no exílio, a primeira coisa que aprendemos sobre a nossa cultura é que está ameaçada de extinção em casa e de assimilação no exílio. Havia uma crença de que a cultura poderia sobreviver apenas à mercê da política; e a política no Tibete oferece pouca esperança de sobrevivência. A minha geração de tibetanos tinha uma sensação de que a cultura tibetana era como uma flor frágil: bonita de se ver, mas incapaz de se defender.

No entanto, o Lhakar está revertendo esta percepção de enfraquecimento da cultura. Desde o surgimento do Lhakar, um número crescente de tibetanos começou a recuperar a cultura como uma ferramenta para lutar por mais direitos políticos. Eles estão usando a arte, a poesia, a literatura e a música tibetanas como veículo para expressar a sua fé no Dalai Lama, o amor por sua terra natal e o desejo de liberdade. Letras de canções com forte carga politica ou vídeos de música com imagens do Dalai Lama se tornam hits instantâneos, vendendo dezenas de milhares de cópias. Este aumento no consumo público de música e poesia tibetana gerou um renascimento moderno na arte e na literatura em todo o planalto. Pela primeira vez em décadas, talvez séculos, os tibetanos estão redescobrindo como a cultura pode salvar a política, em vez de esperar que a política venha a salvar a cultura.

Esta transformação se reflete com um colorido maior no ressurgimento do entusiasmo das pessoas para estudar tibetano. Em várias partes do Tibete, idosos e crianças fizeram o voto de falar apenas em tibetano, eliminando os termos chineses de seu vocabulário. Em Sertha, Kham (chinês: Sichuan), os idosos distribuem dicionários gratuitamente para jovens. Escritores e músicos no leste do Tibete, muitos dos quais preferiam o chinês como língua dominante em seu meio artístico, agora compõem e se apresentam em tibetano. Nos restaurantes e cafés, os proprietários servem os clientes apenas quando estes fazem o pedido em tibetano. Usuários Weibo tweetam em tibetano todas as quartas-feiras; usuários do Renren e do Facebook postam imagens e poemas com mensagens políticas regularmente.

Estas são apenas algumas das histórias que mostram como as ações do Lhakar estão se multiplicando em todo o Tibete, de Lithang a Lhasa, Ngaba a Rebkong, Sertha a Nangchen. Na arte, na poesia e na literatura, os tibetanos são capazes de pintar em tons de cinza que não existem na tela em preto-e-branco da política.
Para uma geração criada sob o mito de que o Tibete nunca poderia se igualar ao poder da China, nada dá mais poder do que perceber que o reservatório inesgotável da nossa cultura está finalmente sendo transformado em um conjunto poderoso de ferramentas não-violentas. O Lhakar transformou a cultura tibetana a partir de ativos congelados em capital líquido, de um cetro sagrado em uma lança de ouro.


3. Adoção da não-cooperação
Mais de um milênio se passou desde que o budismo amansou o Tibete, mas nossos instintos de guerreiros ainda estão presentes. Nos lançamos à batalha antes de calcular os ganhos e analisar os riscos. Em quase todas as lendas tibetanas, a valentia e a ação ofuscam o planejamento de ações e a preparação. O espaço da estratégia ocupa um lugar insignificante no imaginário tibetano.
Durante décadas, a tática predominante na resistência tibetana foi o protesto de rua. Apesar de uma tática eficaz e de baixo risco no exílio, o preço a ser pago por protestos de rua no Tibete é insustentavelmente elevado. O simples ato de protesto representa a possibilidade de ser baleado e a certeza de ser preso. No entanto, através da ênfase do Lhakar na estratégia, os tibetanos estão podendo apreciar o poder da não-cooperação - uma tática que se presta tanto aos mais ousados, quanto aos mais avessos ao risco, sendo menos cara e muitas vezes mais eficaz do que os atos de protesto e persuasão. 
Desde 2008, muitos tibetanos começaram a comer somente em restaurantes tibetanos e comprar apenas em lojas tibetanas, o que levou empresas chinesas a fechar em várias cidades. Este "boicote não declarado" às empresas de proprietários chineses, uma resposta poética à "lei marcial não declarada" da China no Tibete, invoca os princípios da não-cooperação econômica de Gandhi.
Por muitos anos, os tibetanos em Nangchen (chinês: Nangqen) compraram verduras a preços astronômicos de mercearias chinesas, cujo monopólio sobre o mercado de vegetais não era contestado. Mas no início de 2011, um grupo de tibetanos começou a boicotar as lojas chinesas de vegetais. Seu poder como consumidores se multiplicou quando outros seguiram o exemplo. Pouco mais de dois meses depois, quando muitas das mercearias chinesas fecharam por falta de vendas, em seu lugar, surgiram novos fornecedores tibetanos de vegetais.
Pela primeira vez na memória recente, os tibetanos estão vendo como suas ações individuais podem mudar seu futuro coletivo. O discurso de resistência está mudando da vitimização para outro que enfatiza a ação, a criatividade e a estratégia. Até recentemente, a maioria das conversas começavam e terminavam com o desamparo dos tibetanos face à crueldade chinesa. Hoje os salões e casas de chá estão gestando as discussões sobre estratégia, resistência e ação.
Fortalecidos pelos resultados tangíveis da não-cooperação, os tibetanos já não vêem a não-violência como princípio religioso que restringe a ação efetiva; vemos isso como uma arma estratégica que liberta nosso potencial. Como foi comprovado vez após vez em outras revoluções, nada pode remover os pilares de uma ditadura de forma mais eficaz do que uma campanha difundida e sustentada de não-cooperação.


O Futuro do Lhakar
No outono passado, as autoridades chinesas em Sershul, leste do Tibete, detiveram uma mulher tibetana por estar vestindo Chuba em uma quarta-feira. Quase ao mesmo tempo, prenderam centenas de tibetanos por terem participado de um grupo de preservação do idioma, e muitos outros por promoverem o vegetarianismo (os tibetanos mais idosos gostam de imaginar que o bom carma acumulado de reduzir o consumo coletivo de carne vai acrescentar mais anos de vida ao Dalai Lama).
O governo chinês pode ter encontrado um novo inimigo no Lhakar. Mas ao declarar o Lhakar como inimigo, a China tem como alvo um conceito, um nome abstrato, contra o qual não tem armas que o destrua. A essência do Lhakar não está na chuba usada por alguém mas na intenção com que se usa. O verdadeiro Lhakar é um movimento da mente, e, portanto, invisível e intocável por qualquer quantidade de tropas, tanques ou balas. A dura repressão da China sobre as pessoas que falam tibetano, vestem certas roupas, ou se tornam vegetarianas é um reflexo do declínio de sua confiança e insegurança crescente, se voltará contra o regime e acabará fortalecendo o Lhakar no longo prazo.
Ironicamente, a ameaça mais séria ao Lhakar poderá vir de dentro, do mal-entendimento do conceito de não-violência estratégica. Não devemos pensar que apenas vestindo uma chuba ou falando apenas tibetano estaremos cumprindo nossa cota pessoal de ativismo Lhakar ou que não usar chuba ou falar outro idioma irá de alguma forma violá-lo. Uma definição restrita poderia prematuramente estrangular o Lhakar; uma definição aberta e inclusiva dará ao Lhakar espaço para crescer e amadurecer. Se existem mil maneiras diferentes de observar o Lhakar, como o governo chinês desafiará todas elas?
Aqueles que têm uma paixão pela escrita poderiam passar pelo menos uma hora por semana editando a  Wikipedia para se certificarem de que as entradas relacionadas com o Tibete refletem a verdade; aqueles que têm planos de telefonia ilimitado poderiam alocar uma hora às quartas-feiras para telefonar para os consulados e embaixadas chineses e assediá-los sobre o tratamento que seu governo tem dado aos tibetanos (o melhor alívio do estresse é quando o passa para alguém); aqueles que estão aprendendo tibetano poderiam ler as notícias em tibetano, pelo menos uma vez por semana; aqueles criados no Ocidente poderiam sintonizar os serviços em idioma tibetano da Radio Free Asia, Voz da América, ou Voz do Tibete toda quarta-feira; os aditos em compras poderiam dedicar algumas horas a cada quarta-feira para persuadir lojas e varejistas para substituírem produtos Made-in-China por produtos  Made-in-[seu próprio país]; estudantes poderiam dedicar toda quarta-feira para cobrir seus campi com panfletos destacando algum aspecto de injustiça que ocorre no Tibete e uma forma de corrigi-la. Estas são apenas algumas entre as dezenas de ações que as pessoas podem tomar de acordo com as suas próprias competências, habilidades e interesses.
Os movimentos sociais são alimentados por reforço positivo e morrem por políticas moralistas. Na verdade, o Lhakar ganhou grande destaque justamente porque é um tipo de movimento voluntário, flexível e de tamanho único. Devemos permitir que cada pessoa contribua para o movimento livremente, da sua própria maneira e de acordo com suas próprias preferências, ao invés de forçá-la a obedecer a certas regras e aparências. O Lhakar precisa de chefes de torcida e não de policiais.
Durante o Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos, muitos profissionais negros e empresários ricos pediam a Martin Luther King Jr. que abrandasse a campanha pela igualdade. "Não balance o barco", eles imploravam. "Se forçar muito, podemos perder até o pouco que ganhamos." (Felizmente para todos nós, o Movimento dos Direitos Civis continuou a balançar o barco). No nosso caso, também, algumas pessoas irão tentar salvar uma versão mais suave do movimento das garras da China, promovendo um Lhakar-lite. Eles tentarão perpetuar uma versão leve e desdentada do Lhakar, insistindo para que continue a ser um movimento cultural, não político.
Mas tais argumentos estão enraizados em uma psicologia de derrotismo que nos torna incapazes de imaginar o poder tibetano fora dos parâmetros chineses. Ela prescreve um ativismo com medo e o medo é a prisão mais eficiente os opressores já construíram para os oprimidos. Que outros tipos de prisão ou centro de detenção podem nos aprisionar até mesmo no exílio?
Agora é o momento de intensificar o Lhakar, amplificar sua filosofia e multiplicar a sua prática, não em um ritmo ditado pela China, mas pelos tibetanos. Esta não é a hora de dividir os tibetanos entre ativistas vs pacifistas, políticos vs culturais, seculares vs religiosos. Temos de apagar as linhas entre o cultural, o político, o social e o econômico, pois tal compartimentalização não existe na vida real; habitemos todas essas esferas, ao mesmo tempo.

Não está distante o dia em que o governo chinês verá todo tibetano como ativista e cada ação como subversiva. É nesse momento que saberemos que a China perdeu a batalha para o Tibete.


http://www.tibetanpoliticalreview.org/articles/whylhakarmatterstheelementsoftibetanfreedom

Tradução livre de Jeanne Pilli






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